O sol insiste em nascer, vejo pelo bege da persiana que aos poucos pensa ser laranja. A luz faz os olhos sensíveis à insônia de sempre. Mais um dia em que encarno um personagem, talvez o Pedro Vicente, de Terra Avulsa, que fazia do seu apartamento a sua pátria, afinal estamos todos exilados, nos distanciamos de um inimigo invisível, que não baterá em nossa porta para entrar. Não deixará rastro, nem vidraças quebradas, seus passos são silenciosos.
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Não há cegueira evidente, mas não podemos enxergar, e não é só o vírus que está matando, existem alguns já mortos entre nós. Fedem, exalam o cheiro da indiferença. Paramos numa sinaleira qualquer da vida e nos deparamos com um sinal aberto, mas não podemos seguir, o carro para, o corpo está febril, estamos como afogados em terra firme, nossos ossos já não têm forças suficientes para manter ereto um corpo, que agora cai, mas ninguém vê. Os homens estão preocupados com suas empresas, com suas rotinas, com o dinheiro investido, com o poder, com a aparência de uma vida, que nunca existiu. Eles passam e não enxergam o corpo que está afogando-se no calor do asfalto. A polícia chega, mais uma meia dúzia de repórteres amadores, que fotografam tudo e postam insanamente na busca por likes. Um homem de aproximadamente 90 anos, diz o policial, para o outro que escreve, morte por afogamento, seus pulmões estão cheios de água, o outro retruca, mas como? Não há água por aqui. Há, sim. Existe um lago profundo que irá tragar a muitos como ele.
O corpo permanece lá por horas, até que não chegue o departamento médico legal. Não o levam, não o cadastram como desconhecido, pois não porta documentos. O silêncio adormece a cidade, que sangra. Não há choro, nem vozes. Só o silêncio, não o que cala por falta de palavras, o que é a falta de humanidade, a falta de voz, de ausência. Libélulas percorrem o corpo, sinuosamente, como em dança. A lua se esconde entre nuvens, não choveu naquele dia. Tamanduás atravessam a rua lentamente, e sentem tristeza. Do outro lado da rua um bugio lamenta, diz ser em parte culpa sua, do seu egoísmo de estar ali. Quatro ou cinco cães aglomeram-se e entoam a última canção, um adeus àquele corpo imóvel. Algumas flores decidem não exibir a sua beleza, em protesto. Uma forte chuva cai, quebra o silêncio e arrasta o corpo até um buraco, muito próximo dali, onde já existem outros corpos. Passado o temporal, ninguém volta para buscar o corpo, que virou memória, ou talvez história em alguma rede social. Não há mais humanos nas ruas, nem em suas casas, não há mais humanos, a humanidade está extinta, mas nem todos morreram alguns apenas vivem.
*Michelle Azambuja é escritora e professora, graduada em Letras, com especialização em Literatura Brasileira pela UFRGS e atualmente representa o segmento Livro e Literatura no Conselho Municipal de Políticas Culturais de Guaíba. Também é colunista semanal do Guaíba Online sobre educação.
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