Alvo de uma recomendação oficial, o governo brasileiro pode se tornar objeto de uma investigação internacional por suas atuais políticas ambientais e de direitos humanos pela primeira vez em seu período democrático. A proposta é de que o Conselho de Direitos Humanos aprove a abertura de uma investigação, iniciativa do relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas), Baskut Tunkat, responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos.
Para que isso ocorra, os demais governos terião de apresentar um projeto de resolução e aprovar a proposta por um voto da maioria. Entretanto, para os experientes negociadores, tal cenário hoje na ONU seria improvável, apesar de o pedido refletir um mal-estar sem precedentes entre o governo brasileiro, os enviados independentes da ONU e lideranças de outros países, a exempli da França.
No final de 2019, o relator realizou uma missão ao Brasil e, ao preparar seu informe, constatou sérias violações nas obrigações ambientais firmados em acordos internacionais, de direitos humanos e meio ambiente, inclusive no contexto da pandemia da covid-19.
O documento será apresentado pelo novo relator da ONU, Marcos Orellana, que mostrará as avaliações sobre as queimadas, ataques contra defensores de direitos humanos, a situação dos pesticidas, as catástrofes de Brumadinho e Mariana/MG e do derramamento de petróleo nas praias nacionais. O texto foi entregue ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e ainda recomenda que a ONU realize uma Sessão Especial sobre a proteção da floresta Amazônica e dos direitos humanos, assegurando a participação ativa de todos os interessados. Lembrando que Sessões Especiais são solicitadas para situações extremamente graves, a exemplo da Venezuela, Bielorrússia, Síria, Coreia do Norte, Mianmar ou Burundi.
Desde o início do atual governo federal, queixas foram apresentadas ao Tribunal Penal Internacional por diferentes sindicatos e ONGs, mas infelizmente, a corte arquivou temporariamente as denúncias relacionadas ao papel do governo na resposta à covid-19, por considerar que precisaria de mais provas para justificar o inquérito. O atual pedido de investigação vem de um dos mecanismos especiais da ONU, trazendo as queixas sobre a Amazônia e a situação de indígenas e não fala de crimes contra a humanidade, mas de um Estado que não cumpre suas obrigações legais de defender sua população, além de prejudicar o mundo por conta da destruição das matas. Tudo ainda está sob análise.
O relator faz uma convocação aos governos estrangeiros e das entidades para que atuem com o objetivo de frear o que ocorre no país, afirmando que se deixada sem controle, a situação se transformará, não apenas em uma catástrofe nacional, mas também em uma hecatombe com repercussões regionais e globais fenomenais, incluindo a destruição de nosso clima. Muitos embaixadores estrangeiros acreditam ser improvável que a investigação siga adiante, mas destacam que, pela primeira vez desde o final da ditadura militar brasileira, uma proposta concreta será submetida para que se abra uma investigação mais apurada, gerando um constrangimento diplomático sem precedentes, podendo afetar acordos comerciais e colocaria o país de forma permanente na agenda de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Apesar dos avanços positivos nas últimas décadas, o Brasil está em um estado de profundo retrocesso em relação aos princípios, leis e normas de direitos humanos e preservação do meio ambiente e para apoiar suas ações e inações, o governo continua a negar verdades científicas incontroversas, introduz sem justificativas, incertezas e argumentos míticos e aponta que atores da iniciativa privada são orientados a desconsiderar as leis destinadas a salvaguardar os bens comuns globais e os direitos dos povos indígenas e das pessoas de descendência africana, de forma que os crimes corporativos contra trabalhadores, comunidades e meio ambiente são perpetrados com impunidade, e os direitos à informação e participação são drasticamente reduzidos.
O pedido de investigação ainda denuncia que várias decisões judiciais e parlamentares não são implementadas quando desfavoráveis aos interesses privados. A retórica inflamatória, a rejeição da sustentabilidade e o fracasso em processar tem incendiado outra epidemia, uma de intimidação, ataques e assassinato de defensores dos direitos humanos e meio ambiente.
De acordo com o documento, depois de diversos avanços desde o ano 2000 na preservação do meio ambiente, o atual governo promoveu uma mudança no rumo do país, de maneira que hoje está em um caminho íngreme de regressão da sustentabilidade e dos direitos humanos. As imagens das queimadas desenfreadas da floresta Amazônica, Cerrado e Pantanal se tornaram um visual assustador de retrocesso e do desgaste do compromisso do Brasil com valores e princípios internacionais. Para corroborar com essas afirmativas, ainda se tem vídeos recentes de ministros conspirando para usar a crise do coronavírus, referindo-se à sugestão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião de 22 de abril/2020 de usar a pandemia para "passar a boiada", às mudanças de leis, flexibilização de licenças ambientais e desmonte dos órgãos de fiscalização – IBAMA, ICMBio e FUNAI. Sem o conjunto dos biomas brasileiros, o mundo seria atingido pela devastação das mudanças climáticas, matando inúmeras pessoas e animais, empurrando milhões para a miséria e fome.
De acordo com o documento, a poluição do ar através dos incêndios florestais está a liberar 67% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil e o desmatamento pode levar a novas pandemias. A destruição do habitat florestal também corre o risco de introduzir mais doenças zoonóticas, que podem se transformar em outra pandemia global e insiste que o país retorne a fazer progressos significativos e louváveis na contenção do desmatamento, com uma queda de 82% nos dez anos anteriores a 2014, designando áreas protegidas, reforçando as leis e suas aplicações, auxiliados por imagem de satélite. Atualmente, também se observa a interferência no ciclo natural das águas, no que se refere aos Rios Voadores.
O documento diz de maneira perturbadora, que a fiscalização do que parece ser uma operação criminosa de grande escala, como a perpetração dos incêndios é praticamente inexistente e a impunidade reina.
De acordo com o relatório, as instituições com mandato para garantir a participação da sociedade civil foram minadas, fechadas ou sob ataque nas diversas instâncias de participação, incluindo no CONAMA, pelo simples fato de realizarem as denúncias e buscarem fiscalizar as medidas mitigatórias de solução, de forma que os governantes, sem qualquer fundamentação, defendem o termo 'terroristas', culpando-os por desastres ambientais como o derramamento de petróleo de agosto de 2019.
Revela ainda que o Brasil foi o país mais mortífero para os defensores dos direitos humanos e ambientais em 2016, ficou em quarto lugar em 2018, com números que apontam para um aumento em 2019, com mais de 300 pessoas assassinadas de 2009 a 2019 em relação a conflitos de terra e recursos na Amazônia, mas apenas 14 casos foram a julgamento. O fato de não se tratar a impunidade reforça a noção de que tais violações de direitos humanos poderiam ser toleradas, o que é inadmissível aos olhos internacionais.
Outro debate se refere ao papel da ciência e da saúde no atual governo, sendo estas brutalmente ignoradas, principalmente quando se vê a redução de investimentos destinados à educação e pesquisa.
A ONU também recebeu denúncias sobre o suposto uso de pesticidas como "armas químicas" para expulsar as comunidades indígenas e quilombolas de suas terras, já que o aumento do uso destas substâncias no Brasil é mais de 338% desde 2000, de forma a ficar entre os três maiores consumidores de agrotóxicos do mundo e às vezes o maior consumidor por mais de uma década. Ainda se refere à tendência de aprovação de novos pesticidas, visto que 30% dos ingredientes ativos (116 de 393 substâncias) não são aprovados na União Europeia e que em 2019, o Brasil permitiu a introdução de 474 novos produtos pesticidas.
Entre as dezenas de recomendações ao Estado brasileiro, o relatório pede que um modelo de crescimento econômico não dependa da degradação ambiental, além da mobilização urgente de recursos e capacidade para monitorar e aplicar todas as proteções ambientais e que se respeite o papel fundamental da participação pública na democracia e na boa governança, incluindo a inestimável defensa dos direitos humanos e na proteção plena deste compromisso.
Na reunião de 18/09/2020, chegou-se à conclusão de que nos últimos cinco anos, desde a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, houve progresso em relação à melhoria da saúde materna e infantil, expansão do acesso à eletricidade e aumento da representação das mulheres nos governos. No entanto, foram contrabalançados pela crescente insegurança alimentar, pela deterioração de ambientes naturais e desigualdades sociais persistentes.
Pressionado por entidades nacionais e internacionais de proteção ao meio ambiente, o Presidente Jair Bolsonaro utilizou o discurso de abertura da 75ª Assembleia geral da ONU em 22/09/2020 para:
- rebater críticas de que o governo segue inerte aos fatos ocorridos no cenário ambiental brasileiro;
- mencionar que designou o Vice Presidente Hamilton Mourão para estar à frente do Conselho Nacional da Amazônia, citando a mobilização de recursos (questionáveis) para controlar o desmatamento e as queimadas, combater atividades ilegais e o crime organizado na região;
- alegar que o Brasil tem avançado na implementação dos objetivos da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, defendendo que a preservação ambiental deve estar em consonância com o desenvolvimento econômico (o que não se vê no país);
- citar que o Brasil vem trabalhando para atrair financiamentos que banquem projetos florestais para o benefício de mais de 20 milhões de habitantes regionais;
- enfatizar que a agricultura brasileira exporta para mais de 180 países, com o objetivo de solicitar o fim das barreiras comerciais impostas aos nossos produtos, argumentando que essa postura é necessária para alimentar bilhões de cidadãos em situação de vulnerabilidades diversas;
- retomar o discurso de que o desmatamento enfraquece o agronegócio (retórica deslumbrada);
- informar que, em sistema de coalizão inédita, 230 empresas ligadas às áreas de meio ambiente e agronegócio, enviaram ao governo federal um conjunto de propostas para deter o desmatamento que destrói a Amazônia;
- declarar que faz esforços para salvar vidas sem ignorar os custos sociais e econômicos;
- expressar condolências às famílias vítimas da pandemia, do desmatamento e das queimadas.
Ambientalmente falando, apesar do Brasil estar nitidamente em um momento de crise global, ações de cunho permanente serão cobradas e deverão ser tomadas em todos os níveis de discussão pela assembleia da ONU, de forma a levar o Planeta de volta aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, atualmente descritos na Agenda 2030. Esse é um momento de mudanças profundas e sistêmicas para gerar uma economia de fato mais sustentável, que funcione para todos, cabendo a cada habitante, repensar seu sistema de consumo e de alimentação, buscando voltar-se àquilo que a natureza nos dá de graça.
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