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Segunda-feira, 09 de Dezembro de 2024

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A água é um bem infinito? Entenda sobre o mito da abundância à escassez hídrica

Ela é um dos recursos naturais que mais tem mostrado sinais de que não resistirá por muito tempo às intervenções no meio ambiente

Aline Stolz - Papo Ambiental
Por Aline Stolz - Papo Ambiental
A água é um bem infinito? Entenda sobre o mito da abundância à escassez hídrica
Alina Oliveira de Souza
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Culturalmente tratada como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais tem mostrado sinais de que não resistirá por muito tempo às intervenções no meio ambiente e às mudanças climáticas se os comportamentos da Humanidade continuarem a tratá-la como recurso ilimitado e regular.

 

No século XX, o consumo de água aumentou 6 vezes, ou seja, o dobro do crescimento da população mundial. Atualmente, 26 países enfrentam escassez crônica de água e a previsão é de que em 2025, o problema afete 52 países e 3,5 bilhões de pessoas.

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Em nível global, o desafio é conter o aumento da temperatura do clima, fator que gera ondas de calor e extremos de seca que afetam a disponibilidade de água, além dos efeitos de La Niña e El Niño. O relatório especial do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas - IPCC das Nações Unidas mostra que, se a temperatura global subir acima de 1,5°C e em todo o mundo, mais de 350 milhões de pessoas ficarão expostas até 2050 a períodos severos de seca. Essas consequências gerarão fome extrema, aumento de doenças, degelo quase total das camadas polares, proliferação de insetos malfeitores de culturas extensivas, alterações nos microclimas, entre outros.

É importante que se entenda que a água doce disponível no planeta tem uma distribuição desigual. O Brasil, por exemplo, detém 12% da água doce mundial, a maior reserva de água superficial do mundo, vastos reservatórios de água subterrânea, como o Aquífero Guarani e duas das maiores áreas úmidas: a Bacia Amazônica e o Pantanal Mato-Grossense.

 

No entanto, essa abundância de água não garante a segurança hídrica do país, já que enfrenta desafios no que se refere à disponibilidade do recurso e a discrepância geográfica e populacional da água brasileira é um dos grandes problemas: a Região Hidrográfica Amazônica comporta 74% da disponibilidade de água, mas é habitada por apenas 5% dos brasileiros.

Atualmente um dos principais desafios para os gestores do país, principalmente das esferas municipais, é garantir o acesso à água de qualidade a todos os cidadãos, principalmente com o advento de novas legislações de saneamento e resíduos sólidos que interferem na captação e potabilidade da água a ser consumida. 

Em várias regiões do país,  os diferentes impactos já são sentidos e monitorados há anos. Dentre eles, citam-se a escassez ou disponibilidade, desaparecimento de nascentes e rios, diminuição das margens e áreas de APP, aumento da poluição da água, mas principalmente a falta de investimentos no setor. Especialistas alertam que os problemas podem ser agravados se não forem tomadas medidas imediatas e se a sociedade não mudar sua percepção e comportamento em relação aos recursos naturais.

 

O Brasil possui 12 regiões hidrográficas que passam por diferentes desafios para manter sua disponibilidade e qualidade hídrica. O mapeamento e estudos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) mostram que, nas bacias que abrangem a Região Norte, o impacto vem principalmente da expansão da geração de energia hidrelétrica, do desmatamento da Amazônia, da poluição gerada por  garimpos clandestinos e da expansão das culturas de soja e gado. Na Região Centro-Oeste, é a expansão da fronteira agrícola que mais desafia a conservação dos recursos hídricos, incluindo o aumento das queimadas. As regiões Sul e Nordeste enfrentam déficit hídrico em virtude das posturas ocorridas nas regiões Norte e Centro-Oeste e a Região Sudeste apresenta o maior problema da poluição hídrica em virtude a alta densidade populacional.

Culturalmente no Brasil, as gerações mais antigas foram criadas com o mito de um país riquíssimo em água, que a falta de água seria um problema crônico e histórico somente no semiárido do Nordeste. Obviamente, desde 2013, na primeira crise que brasileira - o apagão, que na verdade foi uma seca sem precedentes, não foi resultado só de uma questão elétrica, identificando-se que o Sudeste e o Centro-Oeste têm problemas concretos de disponibilidade de água, intensificados nos últimos dois anos. Pesquisadores ressaltam que a escassez hídrica resulta também da falta de adequada gestão do uso da água, sobretudo em períodos de estiagem - tendência que deve se manter tendo em vista os baixos índices de precipitação registrados no período de 2019 a 2021 e reafirmada pelos  indicativos de que havia um risco de que no verão de 2022 teria novamente um quadro muito complicado em todo o país, o qual se confirmou. 

 

Os especialistas apontam que outra das principais causas para a crise hídrica é o uso inadequado do solo. No Centro-Oeste, por exemplo, estão concentradas as nascentes de rios importantes do país, devido a sua localização no Planalto Central. Conhecida como berço das águas, a região tem vegetação de Cerrado, bioma que ocupa mais de 20% do território e atualmente é um dos principais pontos de expansão da agropecuária, atividade que usa cerca de 70% da água gerada e consumida no país, além das queimadas naturais e criminosas.

Estudos apontam que a mudança do uso da terra tem alterado demais o ciclo da água e faz com que se tenha menos disponibilidade de água/minuto/metro nos rios, os quais encontram-se muito assoreados e recebendo menor disponibilidade de chuva. Dessa forma, o ciclo das águas no país está em colapso. Como consequência do avanço da fronteira agrícola, o Cerrado já tem praticamente metade de sua área totalmente devastada. Os efeitos da ausência da vegetação nativa para proteger o solo já são percebidos principalmente na diminuição da vazão dos rios e na disponibilidade de água para abastecimento urbano. Projeções do Painel Brasileiro de Mudança Climática (PBMC) apontam que nas próximas três décadas, o bioma do Cerrado poderá ter aumento de 1°C na temperatura superficial com diminuição percentual entre 10% a 20% da chuva, lembrando que o desmatamento do Cerrado não afeta somente as comunidades locais, que já relatam dificuldades para plantar, mas também outros biomas e ecossistemas brasileiros, visto que estão todos interligados, pois afeta as chuvas que caem em São Paulo, o desmatamento na Amazônia afeta a chuva que cai no Cerrado e tudo isso afetam os rios voadores que levam chuvas ao Sul do país.

O desafio de garantir o funcionamento do ciclo hidrológico natural no Brasil também tem impacto na manutenção dos aquíferos subterrâneos. Os pesquisadores lamentam que o assunto não tenha destaque no debate público, nas pesquisas e na agenda eleitoral e alertam que é necessário criar, com urgência, um modelo de gestão das águas subterrâneas. 

 

Outro problema que leva à escassez de água é a estrutura precária de saneamento. Considerando as metas estabelecidas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Nações Unidas, do qual o Brasil é signatário, uma das principais preocupações com relação à água é garantir a universalização do saneamento. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA/MMA), mais de 35 milhões de pessoas ainda não têm acesso à água tratada no Brasil e o sistema de abastecimento de água potável gera um volume altíssimo de 37% de perdas, em média, assim como a falta de tratamento do esgoto compromete mais de 110 mil quilômetros dos rios brasileiros que recebem os dejetos.

A agência estima que, para regularizar a situação de saneamento no país, seriam necessários pelo menos R$ 150 bilhões de investimentos em coleta e tratamento de esgotos até 2035, com o objetivo absolutamente fundamental, mas que vai exigir um nível de investimento, comprometimento de agentes públicos e desenvolvimento de tecnologias, sem mensurar a energia que deverá ser colocada pra atingir as metas de saneamento. E não adianta investir em saneamento e ter de buscar água cada vez mais longe, por causa do desmatamento. As ações devem ser consorciadas, complementares e contínuas!

Estudiosos afirmam que os problemas só serão resolvidos quando os governos e sociedade mudarem sua percepção sobre a importância dos recursos naturais para a sobrevivência humana, já que se está vivendo uma falha de percepção e há evidências objetivas que comprovam isso: a população é dependente de água pra tudo e qual é o seu comportamento? Desperdício, consumismo, poluição e desmatamento, ambos em velocidade exacerbada, com uma população que cresce em 75 milhões de pessoas a cada ano no mundo.  Não há lugar seguro hidricamente no planeta e, além da falta de sensibilidade pela preservação do recurso, há uma absoluta falta de governança na gestão da água, já que há indiferença e incapacidade da classe política em lidar com o tema da preservação e educação ambiental permanentes. 

Para evitar o agravamento da situação, pesquisadores do mundo inteiro alertam que é necessária uma evolução do ponto de vista ético e moral e não somente científico e tecnológico, pois a mudança do clima e as intervenções nos ecossistemas são as maiores falhas de mercado da espécie humana, porque é algo em que a inteligência estratégica de sobrevivência do ser humano não funcionou e continua errando de forma insistente. E quais são as consequências vigentes disso? O crescimento de conflitos que já estão estabelecidos pela disputa por água, energia e espaço, aumento de refugiados.

Em se tratando de Rio Grande do Sul, estamos atravessando um verão regido pelo La Niña, de seca extrema e chuvas irregulares e de acordo com a Defesa Civil Gaúcha, mais de 300 municípios já decretaram situação de emergência pela falta de chuvas, secagem de açudes e rios e perda em até 60% das culturas de verão - milho e soja, além da silagem animal.

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Bancos de areia no Lago Guaíba
Foto: Alina Oliveira de Souza, via https://www.picuki.com/profile/alina.souza 

Em se tratando em Região Metropolitana, onde nos encontramos, todos os tipos de poluição presentes na Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba afetam, de forma direta ou indireta, a todos os moradores de Porto Alegre e das cidades do entorno, pois toda água de abastecimento vem desse manancial. A alteração na qualidade da captação do Lago Guaíba, a poluição e a estiagem afetam intensamente uma população de milhões de pessoas, fato extremamente divulgado no verão 2021-2022.

Um ente importante das águas na região metropolitana é o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba - CGBHLG, criado pelo Decreto Estadual Nº 38.989/1998, o qual estuda, orienta e fiscaliza ações na bacia hidrográfica do Lago Guaíba, com área aproximada de 2.973,1 km² em 14 municípios da região metropolitana de Porto Alegre, incluindo a capital gaúcha. Em seu Plano de Bacia, elaborado por várias mãos e etapas, foram definidas as metas de qualidade e quantidade das águas, estabelecendo ações, custos e prazos para atingí-las, além de auxiliar na fiscalização da qualidade das águas que chegam ao lago.

Em 2006, o CGBHLG aprovou, por unanimidade, o enquadramento das águas superficiais da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, suas condições e ações para a qualidade da água, disponível em https://comitedolagoguaiba.com.br/ e concorda com ambientalistas que para diminuir a poluição do Lago Guaíba e melhorar a qualidade de captação, seria necessária uma maior fiscalização de indústrias por parte da Fundação Estadual de Proteção Ambiental do Rio Grande do Sul (FEPAM), uma política pública das águas mais clara pelo Conselho de Recursos Hídricos do RS (CRH), um controle da drenagem urbana e que aumentassem o tratamento de esgotos pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) e Corsan.

Por fim, em Guaíba, alguns movimentos estão acontecendo:

  1. O Ministério Público tem trabalhado arduamente para que, sobre os mananciais do município, especialmente no Arroio Passo Fundo, sejam cumpridas as legislações vigentes e a qualidade das águas sejam preservadas, assim como suas APP’s, a implementação do saneamento básico pela zona sul, a instituição da coleta seletiva, a organização de cooperativas de catadores, a coleta, tratamento e campanhas de adoção de animais como cães, gatos e cavalos, entre tantos outros;
  2. No final de 2021, a Prefeitura instituiu uma “força tarefa” para estudar e implementar medidas de despoluição do APF, formada pela união de várias secretarias - Meio Ambiente, Saúde, Infraestrutura, representantes da Câmara de Vereadores, entre outros, mas esqueceu de chamar o Conselho Municipal de Meio Ambiente e representantes da comunidade para tal, o que enfraquece a boa ideia e inutiliza a escuta da população que sofre na zona sul. 

Trabalho tem aos montes, a questão é ter planejamento, recursos financeiros definidos e pessoal comprometido para que as boas ideias tornem-se ações concretas pelo bem da comunidade guaibense. Mas lembrem-se sempre do antigo ditado: “de boas intenções, o inferno está cheio!”


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