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Quarta-feira, 09 de Outubro de 2024

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Sobre fazer um acordo com os autores: para lermos ficção, temos que suspender nossa descrença

A literatura ficcional trabalha com o ceticismo daquele que lê

Vinício Souza - Literatura
Por Vinício Souza - Literatura
Sobre fazer um acordo com os autores: para lermos ficção, temos que suspender nossa descrença
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Toda vez que lemos uma obra de ficção, fazemos um acordo com o autor. Não assinamos documento algum, não pronunciamos em voz alta qualquer promessa. Esse “contrato” é feito silenciosa e instantaneamente. Nele nos deparamos com as regras que regem o mundo criado pelo escritor, responsáveis para que nós, leitores, acreditemos que aquela realidade ficcional é real enquanto o livro está aberto. Mas, uma vez que as regras (“cláusulas contratuais”) criadas por aquele que escreve são quebradas, que nos sentimos enganados por aquilo que lemos, nossos pés tocam o chão novamente e a obra perde o sentido. Melhor dizendo, a suspensão da descrença passa a inexistir. .

Esse termo — suspensão da descrença — foi cunhado em 1802 por Samuel Taylor Coleridge, poeta, crítico e ensaísta inglês. Ele se refere ao momento em que suspendemos nossa incredulidade com uma obra ficcional em favor da imersão e do entretenimento. Passamos a concordar que, sim, existem bruxos vivendo entre nós, enquanto lemos Harry Potter, que vampiros brilham ao sol, enquanto lemos Crepúsculo, e hobbits arriscam sua vida por incríveis jornadas, enquanto lemos O Senhor dos Anéis. Aceitamos que tudo isso faz sentido, dentro da realidade de cada obra. Porém, essa suspensão da descrença é totalmente voluntária, ou seja, cabe a nós cedermos ou não ao que o autor nos propõe.

J.K. Rowling nos diz que seu mundo contém adolescentes voando em vassouras e procura nos convencer disso, nos apresentando as regras daquela realidade fantástica. Voltemos a falar do contrato. Digamos que aceitamos a proposta da autora — lembrando que isso é feito instantaneamente enquanto lemos —, assinamos o acordo, estamos convencidos. Mas, se lá no meio da história, Poseidon, uma figura mitológica que nada tem a ver com a narrativa, aparece, a autora irá romper com o acordo, terá ido longe demais, terá nos perdido. Mas isto não faz sentido algum!, diremos, ignorando todos os demais fatos fantásticos que já tínhamos visto, já que com eles concordamos. É vital que o autor se mantenha firme com aquilo que se propõe a apresentar. .

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A suspensão voluntária da descrença é a essência de toda ficção. Obviamente, não se prende apenas à literatura. Imagine só se olhássemos filmes de super-heróis e não abríssemos nosso coração para acreditar por algumas horas que o que vemos faz sentido. Pense nos musicais, nos quais pessoas precisam, de repente, expressar seus sentimentos cantando! Mas, apesar da quantidade de fantasia dentro das obras, podemos encontrar em todas elas traços da realidade, que nos auxiliam a melhor entender o terreno em que estamos pisando. Mais interessante ainda é que a ficção pode moldar nosso imaginário do real. 

Criar mundos secundários, convencer leitores e espectadores, largar o ceticismo por alguns momentos são habilidades incríveis do ser humano. Com a ficção, sonhamos e exercitamos a imaginação. Quanto mais pudermos ampliar nosso repertório, melhores leitores seremos. Assim, vamos ser capazes de entender qual o nosso limite da descrença, até onde podemos ser convencidos. Iremos nos conhecer mais ainda.

A crença derradeira é acreditar numa ficção, que você sabe ser ficção, nada mais havendo além disso; a espantosa verdade é saber que se trata de uma ficção, e que você acredita nela por vontade própria.” — Wallace Stevens.

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